segunda-feira, outubro 06, 2008

Tristeza

Se cada coisa soubesse falar
E se a tristeza tivesse vida própria
Como se existisse fora daqueles que sabem reconhecê-la
Que sabem recebê-la
Quem sabe detê-la
Que sabem dizê-la
Quem sabe vivê-la
E quando nos parece invisível
Ou mesmo uma luz
Uma estrela no céu
Mais distante que o céu
Lá de cima a brilhar
No escuro a chorar
No escuro a calar
No escuro um alívio
Um ponto de fuga
Fixado no olhar
Só...
Somente ela e sua luz
A brilhar na imensidão
No silêncio
No vazio
Sem nada mais conhecer
Só...
Somente ela no topo
Aqui em baixo a nos dizer
Que está só
Veio pra ficar
Somente ela e sua luz
A brilhar na imensidão

quarta-feira, outubro 01, 2008

Na corrente deste jogo

Desapareço assim do nada
Reapareço assim como quem nada quer
Saio de fininho e me esquivo na multidão que me esbarra
Observo tudo de longe
Como se pudesse repousar no movimento do universo
Em silêncio a dançar sob o burburinho
Distante a evitar olhares indiscretos
Como se me pudesse esconder por trás de uma cortina invisível
Privando-me de alheia presença
Sem fazer-me notar, nada noto além de mim mesma
Envolta a estranhos íntimos e semelhantes
Impessoais e acelerados, personagens de si mesmos
Eu ponto fixo num sossego desbotado
Calado e sufocado assentado na plateia
É a estreia do espetáculo a cada dia em que me jogo na corrente deste jogo.

terça-feira, setembro 23, 2008

O filme

Dos olhos jorra um mar salgado
Se debatendo em convulsões chorosas
Anuviados pela dor alheia
Chovem cumplicidade
Fixos no horizonte azulado da tela da TV
Embebidos em dramaturgia cinematográfica
Histórias atuadas, por vezes, tão próximas de nossa história vivida
De nossa história de vida
De nossa história sofrida
De nossa história querida
No final para além dos créditos finais
Nos sobram grossas listras coloridas acompanhadas de um som em linha reta
Tuuuuuu.....
No final para além de nossos créditos totais
Nos resta um tênue fio de vida acompanhado de um som em linha reta
Tuuuuuu.....
E na extensão da imensidão pela última vez rolam os dados
O filme acaba, mas seu fim é só o começo....


domingo, setembro 14, 2008

Tripartida

Foi-se meu espírito a assoviar, levezinho a pairar pelo ar
E minh 'alma que pena! É penada, foi-me impossível seguir lhe à revoadas
Aos dois ambos livres, saltam tensões, alusões
Dos dois não sei qual sou mais eu menos eu
Detentos do corpo, pesado e selado
Sorrisos e choros só ele estampava
Já eu trilogia, tripé, tripartida
Se alma, se corpo, se espírito, não sei qual mais sou
Assim me levam me enlouquecem, me tiram a razão, o senso
Os três, como balas, traçam o espaço, perpassam o tempo
Em mim os guardo todos
De mim me guardam toda
Pois no fim de mim enfim, removerão- me os pensamentos, os princípios, a moral, a crença e a descrença, as questões, o prazer e a dor, a memória e o saber
De mim se alimentarão, até nada mais sobrar
A luz se apagará, os olhos se abrirão, uma porta irão ver, por trás da qual, avistarão uma fresta iluminada por uma senda anil no céu
A porta aos poucos se fechará e nas trevas travar-se-á o fim
Eterna condenação!
Essa força que me reduz a pó
Poderia acreditar que em cadeias sintomáticas retornarei como alguém por trás de um nome, de um rosto e de uma condição sempre com sofreguidão
Só não sei o que é pior, se é sumir na imensidão ou existir na pequenez.

quinta-feira, setembro 11, 2008

Quem de mim

Quem de mim carrega o som, o silêncio, a solidão dos passos na calçada
Da fragata apagada, rebocada na calada da velada madrugada
Sou só eu e minha alma desbocada, destampada na maré desalentada
Um suspiro desse nada nessa noite estrelada
Um arrepio dessa pele já gelada e desgastada

terça-feira, setembro 09, 2008

Roça alma, alma torta

Lá na roça eu dormia mais profundo que a cutia
Lá de longe se ouvia melodia caipira

A chuva
A mata virgem
Me embalavam no sossego

Era longe
Era perto
Infinita escuridão

Vaga – lume
Vaga estrela
Brilha o olho da coruja

Pingo d’água
Pingo prata
Que goteja no cerrado

Na minh’alma corre um rio mais escuro que argila
Quanto mais nela mergulho mais profunda vou ficando

Dentro dela eu carrego a tristeza dos cavalos açoitados no trabalho
E o receio das galinhas assoladas no poleiro

Toda torta
Bicho torto
Do pé torto enlameado

Não tem jeito
É recalcada
E já se foi pro atoleiro

domingo, setembro 07, 2008

Demônios familiares

A fonte do mal, que fingimos ou mesmo nos condicionamos a acreditar ser exterior, provém de nós mesmos.
Não há o que combater em criaturas pertencentes a esferas abaixo da nossa, longe do que somos sempre à espreita.
Não há nada além de nós mesmos nas sombras do vale a negar nossa obscura natureza, que por tantas vezes tem se revelado monstruosa.
Com ela procuramos romper os vínculos, evitando cumplicidades, inventando demônios dotados do horror que não somos capazes de assumir como nossos próprios.
Com tanta paixão os combatemos como se representassem ameaça externa.
Ah se estivessem mesmo lá fora
No escuro do quarto
Nos becos das ruas
Prontos para nos tentar
Ah se fossem mesmo demônios
Se fossem mesmo eles a fonte do mal com qual nos chocamos
Estaríamos prontos para seguir adiante
Estaríamos prontos para escolher entre tê-los junto a nós ou rechaçá-los
Estaríamos prontos para vencê-los definitivamente
Quanto já não se passou e cá estão a nos zombar, como sempre o fizeram
Afirmam-se, ou melhor, nós os afirmamos como sendo detentores de todo o mal
O mal, aquele de que já estamos tão acostumados a assistir, sob variadas formas
Aquele que nos chama atenção, ou aquele que nem percebemos
Mas eu pergunto que mal poderia ser maior do que o nosso?
Maior do que o que somos capazes de cometer, mas não somos capazes de admitir e por isso existem os tão indesejáveis demônios, por trás dos quais insistimos em nos esconder.
Basta olhar ao redor, o que vemos além de nós mesmos? Nos matando, nos violando, nos anulando, nos pisando, achatando nossos rostos contra a lama.
Os demônios brindam convencidos de sua bondade, guerreiam entre si e não ousam se olhar no espelho, com medo de revelarem-se por trás de uma face desumana.
Todos repletos de imaculada crença, límpida religião, acreditam serem bons fiéis, em oposição aos demônios diariamente crucificados.
Sim os demônios existem e os conhecemos muito bem, nos são íntimos, dentre eles o mais poderoso chama-se ser humano: criatura capaz de qualquer coisa por tudo, ou pior, por nada.
A vastidão do mal causado por tal ser, não se pode calcular, nem por estatística.
Colocamo-nos numa posição em que a condição humana, se mostra como a mais autentica das credenciais, capaz de nos absorver dos crimes cometidos.
Por vezes, no fundo do poço dragamos desculpas, para o que fizemos e fazemos, na figura de Deus, a final somos sua imagem e semelhança, assim se diz.
O que somos?
Humanos?
E não é isso o que nos garante profundidade, sensibilidade, possibilidades de amar, de se comover, de se empenhar em pró do próximo?
Mas não é também o que nos garante egoísmos, maldades, mentiras, indiferenças, falsidades?
Não somos uma balança entre o bem e o mal, não de deus nem do diabo, mas daquele que emana de nós mesmos?
Mas porque o lado da balança que mais nos negamos a aceitar como próprio de nós se mostrou sempre tão pesado?
Raça rolo compressor, comprimindo “irmãos”, seres humanos, homens, próximos. Dele escorre o sangue, o suor, as almas roubadas, os corpos sem dono, o homem, o bicho, o anjo, o demônio, o deus de seu mundo.
Vagando a consentir, a calar, a suportar dores, a fugir, fingir, disfarçando sua verdadeira desgraça.
Nós,
A mão que dispara o gatilho,
que acaricia um filho,
O punho cerrado que racha ao meio,
que se abre para o próximo,
O juiz implacável que decide o desfecho de sua espécie.