Pular para o conteúdo principal

Demônios familiares



A fonte do mal, que fingimos ou mesmo nos condicionamos a acreditar ser exterior, provém de nós mesmos.
Não há o que combater em criaturas pertencentes a esferas abaixo da nossa, longe do que somos sempre à espreita.
Não há nada além de nós mesmos nas sombras do vale a negar nossa obscura natureza, que por tantas vezes tem se revelado monstruosa.
Com ela procuramos romper os vínculos, evitando cumplicidades, inventando demônios dotados do horror que não somos capazes de assumir como nossos próprios.
Com tanta paixão os combatemos como se representassem ameaça externa.
Ah se estivessem mesmo lá fora
No escuro do quarto
Nos becos das ruas
Prontos para nos tentar
Ah se fossem mesmo demônios
Se fossem mesmo eles a fonte do mal com qual nos chocamos
Estaríamos prontos para seguir adiante
Estaríamos prontos para escolher entre tê-los junto a nós ou rechaçá-los
Estaríamos prontos para vencê-los definitivamente
Quanto já não se passou e cá estão a nos zombar, como sempre o fizeram
Afirmam-se, ou melhor, nós os afirmamos como sendo detentores de todo o mal
O mal, aquele de que já estamos tão acostumados a assistir, sob variadas formas
Aquele que nos chama atenção, ou aquele que nem percebemos
Mas eu pergunto que mal poderia ser maior do que o nosso?
Maior do que o que somos capazes de cometer, mas não somos capazes de admitir e por isso existem os tão indesejáveis demônios, por trás dos quais insistimos em nos esconder.
Basta olhar ao redor, o que vemos além de nós mesmos? Nos matando, nos violando, nos anulando, nos pisando, achatando nossos rostos contra a lama.
Os demônios brindam convencidos de sua bondade, guerreiam entre si e não ousam se olhar no espelho, com medo de revelarem-se por trás de uma face desumana.
Todos repletos de imaculada crença, límpida religião, acreditam serem bons fiéis, em oposição aos demônios diariamente crucificados.
Sim os demônios existem e os conhecemos muito bem, nos são íntimos, dentre eles o mais poderoso chama-se ser humano: criatura capaz de qualquer coisa por tudo, ou pior, por nada.
A vastidão do mal causado por tal ser, não se pode calcular, nem por estatística.
Colocamo-nos numa posição em que a condição humana, se mostra como a mais autentica das credenciais, capaz de nos absorver dos crimes cometidos.
Por vezes, no fundo do poço dragamos desculpas, para o que fizemos e fazemos, na figura de Deus, a final somos sua imagem e semelhança, assim se diz.
O que somos?
Humanos?
E não é isso o que nos garante profundidade, sensibilidade, possibilidades de amar, de se comover, de se empenhar em pró do próximo?
Mas não é também o que nos garante egoísmos, maldades, mentiras, indiferenças, falsidades?
Não somos uma balança entre o bem e o mal, não de deus nem do diabo, mas daquele que emana de nós mesmos?
Mas porque o lado da balança que mais nos negamos a aceitar como próprio de nós se mostrou sempre tão pesado?
Raça rolo compressor, comprimindo “irmãos”, seres humanos, homens, próximos. Dele escorre o sangue, o suor, as almas roubadas, os corpos sem dono, o homem, o bicho, o anjo, o demônio, o deus de seu mundo.
Vagando a consentir, a calar, a suportar dores, a fugir, fingir, disfarçando sua verdadeira desgraça.
Nós,
A mão que dispara o gatilho,
que acaricia um filho,
O punho cerrado que racha ao meio,
que se abre para o próximo,
O juiz implacável que decide o desfecho de sua espécie.

Postagens mais visitadas deste blog

Possível

Se existe mesmo a imortalidade das coisas é possível ainda ver a chuva do outro lado do oceano É possível presenciar as auroras boreais tão distantes daqui onde o horizonte não alcança É possível ver o desabrochar das flores do extremo oposto do planeta É possível ver o nascer do sol de onde nunca o vi nascer É possível ver as florestas e sentir exalar o cheiro das coisas tão distantes de onde estou É possível ouvir as vozes e idiomas desconhecidos do meu É possível ver os rostos dos seres em realidades tão diversas da minha É possível ainda que não haja tempo experimentar tudo aquilo que não provei É possível saborear todos os gostos que não conheci   É possível me conectar a todas a pessoas que nem sequer imaginei É possível viver o dia que jamais esperei É possível deixar para trás É possível chegar ao destino É possível compreender definitivamente É possível alcançar completamente Vou inspirar profundamente E exalar o ar até que se acabe Enxergar o

Show de horrores

Tenho andado por aqui já não é de hoje Sempre me trazem de volta e de volta a qualquer lugar... Ao mesmo lugar Comprimo toda a extensão destes anos, dessa infinitude num pequeno invólucro A partir daí a consciência segue a se esquecer, a tornar-se gradativamente medíocre e pequena Apegada e presa, atada a valores e ilusões, venho mentindo estar tudo bem desde então Tapo os olhos para não ver o horror, tenho medo, não posso abri-los e encarar meu próprio rosto Temo as respostas às perguntas que faço, então me mantenho na superfície, adio a descida até as profundezas deste oceano desconhecido Estou sempre ponderando se vou mesmo fundo na verdadeira natureza da consciência a mover este veículo carnal perdido em sua pequenez Descobrir, buscar, aquilo que no fundo já sei, mas escondo para não perder o controle No silêncio profundo desta consciência infinita um aviso emerge de tempos em tempos: Não há como escapar, nem se esconder, você sabe! Este hospício de caminho
 Eu gostaria de me encontrar comigo mesma Em algum lugar fora do espaço tempo E então questionar todos os desejos despertos ao longo do tempo Eu me olharia nos olhos e estes estariam repletos e vazios Seria eu um ser insondável por natureza, se questionando como se isso estivesse em seu código genético Sempre um ímpeto insaciável me draga até os meus próprios mistérios, uma terra desconhecida que nunca consigo alcançar Porque a sonda que envio para dentro do meu ser nunca atinge uma superfície sólida onde possa pousar? E se eu vagar eternamente no espaço como poeira?