terça-feira, setembro 09, 2008

Roça alma, alma torta

Lá na roça eu dormia mais profundo que a cutia
Lá de longe se ouvia melodia caipira

A chuva
A mata virgem
Me embalavam no sossego

Era longe
Era perto
Infinita escuridão

Vaga – lume
Vaga estrela
Brilha o olho da coruja

Pingo d’água
Pingo prata
Que goteja no cerrado

Na minh’alma corre um rio mais escuro que argila
Quanto mais nela mergulho mais profunda vou ficando

Dentro dela eu carrego a tristeza dos cavalos açoitados no trabalho
E o receio das galinhas assoladas no poleiro

Toda torta
Bicho torto
Do pé torto enlameado

Não tem jeito
É recalcada
E já se foi pro atoleiro

domingo, setembro 07, 2008

Demônios familiares

A fonte do mal, que fingimos ou mesmo nos condicionamos a acreditar ser exterior, provém de nós mesmos.
Não há o que combater em criaturas pertencentes a esferas abaixo da nossa, longe do que somos sempre à espreita.
Não há nada além de nós mesmos nas sombras do vale a negar nossa obscura natureza, que por tantas vezes tem se revelado monstruosa.
Com ela procuramos romper os vínculos, evitando cumplicidades, inventando demônios dotados do horror que não somos capazes de assumir como nossos próprios.
Com tanta paixão os combatemos como se representassem ameaça externa.
Ah se estivessem mesmo lá fora
No escuro do quarto
Nos becos das ruas
Prontos para nos tentar
Ah se fossem mesmo demônios
Se fossem mesmo eles a fonte do mal com qual nos chocamos
Estaríamos prontos para seguir adiante
Estaríamos prontos para escolher entre tê-los junto a nós ou rechaçá-los
Estaríamos prontos para vencê-los definitivamente
Quanto já não se passou e cá estão a nos zombar, como sempre o fizeram
Afirmam-se, ou melhor, nós os afirmamos como sendo detentores de todo o mal
O mal, aquele de que já estamos tão acostumados a assistir, sob variadas formas
Aquele que nos chama atenção, ou aquele que nem percebemos
Mas eu pergunto que mal poderia ser maior do que o nosso?
Maior do que o que somos capazes de cometer, mas não somos capazes de admitir e por isso existem os tão indesejáveis demônios, por trás dos quais insistimos em nos esconder.
Basta olhar ao redor, o que vemos além de nós mesmos? Nos matando, nos violando, nos anulando, nos pisando, achatando nossos rostos contra a lama.
Os demônios brindam convencidos de sua bondade, guerreiam entre si e não ousam se olhar no espelho, com medo de revelarem-se por trás de uma face desumana.
Todos repletos de imaculada crença, límpida religião, acreditam serem bons fiéis, em oposição aos demônios diariamente crucificados.
Sim os demônios existem e os conhecemos muito bem, nos são íntimos, dentre eles o mais poderoso chama-se ser humano: criatura capaz de qualquer coisa por tudo, ou pior, por nada.
A vastidão do mal causado por tal ser, não se pode calcular, nem por estatística.
Colocamo-nos numa posição em que a condição humana, se mostra como a mais autentica das credenciais, capaz de nos absorver dos crimes cometidos.
Por vezes, no fundo do poço dragamos desculpas, para o que fizemos e fazemos, na figura de Deus, a final somos sua imagem e semelhança, assim se diz.
O que somos?
Humanos?
E não é isso o que nos garante profundidade, sensibilidade, possibilidades de amar, de se comover, de se empenhar em pró do próximo?
Mas não é também o que nos garante egoísmos, maldades, mentiras, indiferenças, falsidades?
Não somos uma balança entre o bem e o mal, não de deus nem do diabo, mas daquele que emana de nós mesmos?
Mas porque o lado da balança que mais nos negamos a aceitar como próprio de nós se mostrou sempre tão pesado?
Raça rolo compressor, comprimindo “irmãos”, seres humanos, homens, próximos. Dele escorre o sangue, o suor, as almas roubadas, os corpos sem dono, o homem, o bicho, o anjo, o demônio, o deus de seu mundo.
Vagando a consentir, a calar, a suportar dores, a fugir, fingir, disfarçando sua verdadeira desgraça.
Nós,
A mão que dispara o gatilho,
que acaricia um filho,
O punho cerrado que racha ao meio,
que se abre para o próximo,
O juiz implacável que decide o desfecho de sua espécie.

quarta-feira, setembro 03, 2008

Dos dias aos dias

Dos dias incríveis que achei jamais fossem findar-se, à beleza da chuva que lhe lambia os ombros cobrindo-os de nódoas prateadas.
Aos dias terríveis em que o tempo parecia um infausto, à aflição de vê-lo partir, de conter-me parada, quando na verdade as pernas imploravam correr-lhe ao encontro.
Dos dias perfeitos em que o sol beijava-lhe a face e dos lábios entreabertos surgia um horizonte luminoso, enquanto permanecia sentado a se aquecer, se soubesse que em meu coração corre seu sangue e que meus sentimentos são tão seus quanto meus...
Aos dias intempestivos em que se ia correndo para alcançar o bonde que lhe parecia fugir, se soubesse que seus pés são meus pais e seus passos meus guias...
Dos dias maravilhosos em que nos sentávamos quietos e nossos olhos nem mesmo piscavam, se soubesse que somos ligados muito além da linhagem genética...
Aos dias malditos que de você me afastei, para uma localidade remota, se soubesse que de você herdei vida...
Dos dias repletos que com você dividi que com você me alegrei que com você gracejei.
Aos dias cinzentos que por você lamentei.
Dos dias jocosos que caminhei ao seu lado.
Aos dias sombrios que nem de longe te vi.
Dos dias aos dias que não sei definir, que não sei revelar, nem ao menos explicar se são seus ou se são meus.
Dos dias aos dias que de meus são só seus e de seus nada meus.



domingo, agosto 31, 2008

Estrelas

São 23h30min, estou em casa a me arrumar para a Festa. Roupas quaisquer, brincos quaisquer, sapatos quaisquer, mas maquiagem hoje não, o palhaço vai sem máscara.
Não pretendo impressionar, quero mesmo é me impressionar, com a festa, com os ritos e universos paralelos.
Quero mesmo é ouvir risada barulhenta, gargalhadas que ecoam e destoam do ambiente finesse. Todos olham, giram os olhos e cochicham aos ouvidos.
Quero mesmo é apreciar numa taça de aparências a balbúrdia do evento, beberico cada mundo do universo com a sede de um flâneur.
Giram luzes coloridas, giram luas fragmento, as estrelas pós- modernas circundando a multidão.
O som que nos envolve, nos embala na balada balizando as distinções.
O barulho, a batida, bane vazios entre sujeitos que se adjetivam aos sussurros ou aos berros aos ouvidos de quem quer...
Quero mesmo é mergulhar em realidades virtuais, em imagens prolongadas de raios refletidos, em sucessões de analogias que se impõe aos indivíduos.

terça-feira, agosto 26, 2008

Nós

Sentadas no chão, cúmplices ambivalentes, sussurramos segredos cruéis.
Tão pura e crua livre de mim.
Sua voz é suave e me encanta.
Seu perfume é jasmim, sua presença divina.
Ergue em brinde uma taça de vinho, quente, doce, suave, servil...
Meu rosto, nas sombras, se esconde do seu, manchado, borrado, pintado, culpado.
Devolvo-lhe o brinde num tubo de ensaio, gelado e amargo, abismo absinto.
Amável me afaga os cabelos, me deita no colo, compadece.
Meus gestos agrestes, implacável me esquivo.
Seus olhos tão dóceis procuram suporte, molhados, sinceros.
Minha língua afiada te injeta veneno, te expulsa pra longe, te quebra cristal.
Te empurro, te excluo, simplória, te amo.
Tão longe, estou perto, sou ferro, sou cal.
Tão perto está longe, é favo, é terra.
Te espero no eterno.
Num instante me espere.
Para sempre quadradas, redondamente enganadas.

domingo, agosto 24, 2008

Éder

Correu como um louco até o jardim, o canteiro de flores de cores mui vivas e odores mui fortes, contrastavam com o que se passava por dentro. Seria preciso intervir, sim, pois, ele precisava estender para fora a solidez que se pesava no interior.
O ímpeto lhe imputava gestos dramáticos afogados no caos. Arrancou todas elas, nas mãos suas cores amassadas, misturadas e os cheiros achatados, vexados.
Suplício! Não suportou a beleza, não naquele momento.
Suava e o cheiro era forte, chorava e o gosto era amargo.
A terra, foi só o que sobrou, nela deitou-se o cadáver, nela roçou a matéria e forrou-lhe de inércia.
Os dedos das mãos esticados, tais como dentes de arado, cravaram o solo e ali ficaram tal qual ferramenta desamparada de braço ceifeiro.
Os vermes roíam-lhe as unhas, expelindo excrementos da terra.
Despia-se de calor e conforto e os olhos mais nuvens que brilho, jorravam meias – verdades.
Da boca, fenda aberta, cavidade errática, escorria saliva espumosa.
Ahhhh Éder quão ébrio tu és, já intolerante diante do espelho, vai-se de encontro ao martelo opressor.
Ahhhh chegara ao cume, estava imune de paz patológica.
As moscas em ti voam leves no ouvido zumbindo asco e desprezo.
Estendido na terra, tormento de dor!
A moral decomposta exalava odor nauseabundo.
Sensações espasmódicas refreavam as emanações cerebrais.
Sua memória era como um fleche desagradável que lhe fazia fechar os olhos involuntariamente, desaparecia, se desvanecia.
Levantou-se enojado, fartado de si.


quinta-feira, agosto 21, 2008

O Rio de Sangue

Corre um rio, no jardim das profecias,
Um rio de águas turvas, nervosas, revoltas.
Um rio retesado, no limite, temperamental.
Veio extenuado, minguado.
Veia rasgada,
Lama escarpada,
Artéria exaurida,
Penetra verdes pradarias,
Goteja perene teu sangue à revelia.
Filo marginal.
Curso retrátil, caudaloso.
Líquido viscoso, venenoso.
Nocivo, repulsivo.
Um rio assombrado pelas almas,
Assoreado pelos corpos,
Assolado, desolado pela dor.
O rio se reflete, se sorve,
Regurgita desespero, ânsia.
Revolve o pesar, a tristeza, o desespero.
Ressentido de tuas águas, do teu plasma, do teu sumo.