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Débito



Neste mundo assim que nascemos contraímos uma dívida.
E conosco a dívida cresce, indefinidamente, inevitavelmente.
E então somos ao longo de nossa existência preparados para pagar estas dívidas.
Não tivemos a oportunidade de escolher se queremos ou não nos endividar, simplesmente somos forçados a pagar como condição inerente ao nosso ser.
Um pagamento parcelado até o último suspiro de vida.
Ingressamos na escola e somos aos poucos preparados para a vida, que se resume ao mercado de trabalho. Nos ensinam que é preciso trabalhar para que sejamos dignos, para que sejamos “alguém”.
Aos poucos nos ensinam que não devemos confiar em qualquer um, nos ensinam que devemos ter cuidado com o mundo lá fora, nos ensinam a temer e com medo nos entregamos, nos ensinam que devemos ser fortes para suportar o peso da cruz que devemos carregar, devemos suportar as pressões com perseverança se quisermos vencer. Nos ensinam, portanto, a suportar a escravidão docilmente sem jamais questionar o porque disto tudo, afinal, não cabe a nós pobres mortais questionar as coisas que sempre existiram e sempre existirão desta maneira.
Não cabe a nós, pequenos humanos, refletir sobre o que realmente somos, cabe a nós aceitar pacificamente nossa situação, aceitar o mundo como ele é, por mais injusto que pareça, pois o tempo todo tentam nos convencer de que todo esse sofrimento vale a pena, seja porque a religião nos promete o paraíso e libertação após uma vida toda de provações, seja porque o sistema monetário nos promete uma vida confortável e estável, após anos de trabalho incessante, seja porque aqueles que amamos nos fazem querer seguir a diante neste caminho de espinhos, dentre milhares de outros motivos, de outras promessas, de outras mentiras e falácias, tão falsas quanto a vida que levamos, quanto o amor que supomos ter.
Quão rudimentar ainda somos, escravos de um sistema de milhões de possibilidades para se endividar ainda mais e a isso chamamos liberdade de escolha, liberdade para decidir seu próprio destino, liberdade para ser o que quiser, fazer o que quiser.
Nem sequer arranhamos o real sentido de liberdade ainda, nem sequer imaginamos o que isso possa ser, de tão cegos que estamos, de tão escravos que somos, de tão enganados, de tão sedados.
Como pode uma humanidade inteira curvar-se a tamanha mediocridade, deixar-se conquistar por um materialismo paupérrimo, levando uma vida com tamanha incompetência.
Contentando-se com felicidade aos pedaços, entre altos e baixos, como podemos aceitar com naturalidade abusos contra a própria vida no planeta?
Uma vida pobre, quase inútil, despedaçada, fragmentada, apagada.
Achamo-nos especiais? Incomparáveis?
Pois digam-me onde estão as particularidades de seres que aceitaram curvar-se todos a escravidão, a padronização, classificação, uniformização.
Creem que seu modo de vestir é único, seu gosto musical é único, seu estilo de vida é único, pois saiba que milhares de outros vestem estas mesmas marcas, ouvem estas mesmas músicas, levam o mesmo estilo de vida. Tudo o que se enquadra neste sistema falso e corrupto é feito para uniformizar, enquadrar, encaixar peças em um tabuleiro para que toda esta mentira se perpetue.
A particularidade de um ser não se resume a roupas, músicas, estilos de vida, nada disso importa realmente, tudo não passa de uma superfície que se enquadra a um sistema incivilizado. Nada disso revela a potencialidade do ser humano integrado a todos os outros seres, nada disso explora as verdadeiras capacidades dos seres que coabitam o mesmo ambiente, o mesmo planeta, nada disso conjuga a unicidade presente em todas as coisas falsamente separadas e divididas.
Como podemos nos deixar levar assim ao nosso próprio fim tão pacificamente, como podemos nos conformar com toda dor gerada, como podemos legar às gerações futuras, aos nossos filhos, a todos os seres vivos tamanha destruição.
Nosso modo de vida deveria ser motivo de vergonha e indignação e não estagnação e aceitação! Vamos nos levantar, vamos acordar deste pesadelo e começar desde já a reverter a situação, deixar de lado as futilidades do ego, enxergar a diante, remover o véu da ilusão em que vivemos e começar a erguer uma civilização. Nem sequer somos uma civilização, estamos abaixo disso, no fundo do poço, não há mais degraus para descer, mas ainda há muitos para subir.
Porque continuar a rolar na lama em que estamos, porque nos limitarmos a revirar o lixo que criamos, porque nos repetirmos eternamente em erros que tantas e tantas vezes cometemos?
Porque tamanho apego a todas as coisas, não é preciso se prender, segurar, de nada adianta, pois todas as coisas um dia deixarão de serem nossas para serem de outro alguém.
Este sistema precisa acabar, precisa quebrar, é preciso por fim a toda essa ilusão inútil em que vivemos. Cedo ou tarde vai acabar.

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