quinta-feira, junho 26, 2008

Maria em fuga

Em casa todos dormem…
Sua mente insone se angustia cada vez mais sob a opressão do silêncio.
Levanta-se da cama, procurando o controle da TV.
Madrugada, droga de filme B!
Desiste da TV.
Alarmes acionados, empecilho para os zumbis da noite.
Do outro quarto sonoros roncos ecoam.
Pé por pé desativa o alarme. Os roncos continuam. O caminho está livre.
Veste uma roupa qualquer.
É dado início a fuga.
Desce vagarosamente as escadas. Os roncos permanecem regulares.
Onde estão as chaves do carro? Porque nunca deixam no gancho?
Vai até a cozinha e lá estão sobre a mesa.
Abre a porta evitando ruídos. Os roncos, ainda os ouve. Sinal livre.
Agora a parte mais difícil, levar o carro. A arma do crime. Sem provocar um escarcéu.
Gira a chave na ignição. Olhos fechados. Implora para que a mecânica do som falhe desta vez.
Maldito seja, funcionou e muito bem.
Motor ligado, não há como voltar atrás.
Assim que se afasta de casa sente-se cada vez melhor. Liga o som e perde o rumo.
Duas da manhã. Cidade fantasma.
Maria fumaça. Maria gasolina. Maria em fuga.
Acelera o carro e junto vai seu coração.
Nada mais importa. Está partindo. Toma a estrada.
Estremece, mas não se arrepende, está decidida. É chegado o momento.
Ultrapassa os limites de velocidades e quer ainda mais.
Não há como voltar atrás e nem quer.
Pelo espelho olha para o banco traseiro. Lá está ela, sentada a esperar.
Olhos vidrados. Está em serviço.
Por vezes atende a chamados de emergência. Se ela vem não há como voltar atrás.
No volante sente um frio na espinha. Enjoa. Permanecem os olhos a observá-la.
Está obstinada, chamou e ela veio atender-lhe o pedido.
Pela última vez em sua vida olhou pelo espelho e piscou para ela.
Girou o volante e o fim se dera num piscar de olhos.
A fuga. Ato consumado.

sábado, junho 21, 2008

Dado

Dado na mão, mesa vazia apenas migalhas de pão [rastros ordinários]
Dúvidas [tédio], chove
Mão cerrada, fria, comprime o dado [sopro quente]
Quais as chances? [suspira]
Rola o dado sobre a mesa, desliza na superfície lisa, cai [Pic! Pic! Pic! Pic! Piiiic]
Quica no chão, para.
Quais as chances?
Seis! [sorri]
O tempo se vai a jogar dados [Silêncio]
Chove e o dado é deixado onde está [boceja. Sintomas do início do dia]
E as chances?
Já disse! São seis que se multiplicam por dez e por mais dez e mais dez e mais dez...
[Arrepia. Imagina 6x10x10x10x10 infinitamente]
A chaleira apita no fogo, é hora de tomar o café e se tornar novamente ordinário.

segunda-feira, junho 16, 2008

Senhor...

Senhor?
Haveria o senhor de se despedir quando julgasse não mais suportar a realidade em que nos limitamos a viver.
Há tempos não o encontro, nem mesmo na solidão a que se propôs.
O senhor existe... Não é mesmo?
Ambos sabemos... Não é mais segredo.
Vossa mente perambula num extenso vazio, na esperança de se compreender.
Os pensamentos que lhe percorrem a cabeça, tão leve e pesarosa, são como fogo líquido.
Uma pena... Não toquei solo aberto por tremores febris de vossa imaginação.
O senhor pensa ser dentre todos os seres, aquele a quem se esqueceu e não mais pôde achar-se em vida.
Pode me ouvir?
Devo então perguntar: E se em ti pousassem as esperanças de quem quer que seja?
Vossas idéias percorrem o tempo – espaço e se aquecem se chocam se expandem...
Qual fora mesmo vossa lição?
Força propulsora fora plantada em terreno inóspito.
A chama se fez por combustão de ínfima pequenez, firme e dispersa intensa e moribunda, fenômeno inconstante num giro imprevisível.
Amigo, mestre acompanhe-me sempre, mesmo quando ausente.
Sois filósofo que se assemelha as estrelas que brilham constantes no céu.
O combustível se extingue, chega a morte, mas não o fim.
Vosso caráter estelar se converte num buraco negro que tudo consome ao redor, nele nos perdemos ou nos achamos.
Vossa luz se dispersa no vácuo, mas há de se refletir e brilhar centenas de vezes mais.
Mariposas rondam vosso brilho, girando encantadas, perdidas trombando, insistem até morrerem em meio às ideias.
Meras divagações sobre vós.
Confesso ter acreditado que estivesses aqui ao meu lado.
Meu coração lamentou...
Pensei em orar, mas a muito perdi a fé.
Não me lembro exatamente quando deixei de acreditar, mas sei que foi este o momento em que o perdi.


sexta-feira, junho 13, 2008

Queria estar com vocês

Queria ir, mas tive de ficar…
Só queria passear.
Queria ficar, mas tive de ir...
Só queria me deitar.
Queria lá estar em um jardim a nos sentar.
Queria ali ficar a observar o pôr-do-sol ao lado de vocês.
Queria adiante caminhar e conversar com vocês bem cedo assim que o sol nascer, em um lugar cheio de encantos simples, apenas meus e seus.
Queria voltar e me aconchegar ao lado de vocês em uma noite qualquer a ver estrelas e cantar.
Queria na sexta-feira junto de vocês colher frutos no quintal.
Queria no domingo canoar com vocês, todos calados a sonhar.
Queria com vocês acalentar o coração e sorrir não no futuro, mas num exato momento.
Queria com vocês apenas o presente do presente.
Queria estar...
Estar apenas com vocês...
Vocês sabem quem são...
E sabem que era mesmo isso o que eu queria.


segunda-feira, junho 09, 2008

O livro

O livro
Matéria concreta
Ideia abstrata
As páginas dançam e se tocam ao som do papel
Mil línguas ondulam ruminam palavras engolem ideias
Olhos famintos lhe invadem o texto
O corpo do livro, preto no branco, palavras impressas
A alma do livro, misto de cores, palavras expressas
Os livros no cárcere da prateleira, conversam, sussurram,
Discordam, concordam,
Brigam, se amam
Os livros sorriem ou choram atenção
Todos eles carentes de olhos que os leiam e apoderem-se de sua intimidade.


quinta-feira, junho 05, 2008

Caminhos e Rios

Os veios dos rios cortam caminhos e caminhos cortam o fluxo dos rios.
Caminhos e rios se cruzam,
Se unem,
Se aliam,
Se abraçam,
Se beijam,
Caminhos e rios se nutrem.
Brotam caminhos de onde nascem os rios,
Caminhos se seguem,
Deságuam os rios e florescem caminhos.
Caminhos e rios se ornam de cores,
Verde em vida,
Vermelho em versos,
Azul em afeto,
Amarelo em arte,
Delicados em profunda devoção,
Dádivas dos deuses.
Pudera eu trilhar caminhos...
Pudera eu beber dos rios...
Sem lhes tirar a vida que naturalmente me oferecem.

terça-feira, junho 03, 2008

Monólogo da Árvore

Ah… Nós caímos...
Derrubaram-nos…
Não só a nós, mas tudo ao redor...
Ao longo de quilômetros, milhas de distância, ouço todas as outras caírem.
Deitam-nos ao chão, nos violentam e assim dão-nos utilidade.
Fazem de nós o que não somos.
Éramos seres vivos e nos converteram em matéria bruta.
Nosso reino fora subjugado ao reino destes.
No topo da cadeia alimentar, estão nossos algozes!
São eles, os detentores de poder do reino animal.
O homem, dito mais completo e perfeito organismo de seu reino, nos pisa como gigantes a caminhar sobre gravetos.
A grandeza de teus atos limita-se a si mesmos, mas os propósitos de suas ações ultrapassam quaisquer fronteiras.
No cume de sua genialidade destroem-se entre si.
Ministros da guerra.
Ceifadores funestos.
Semeadores estéreis.
Eu cá estou, não sendo eu e sim aquilo, em singelo monólogo orvalhando palavras ao léu.