quinta-feira, novembro 26, 2009

O corpo

Eu caminhava na neve
Os passos se afundavam
No vazio daquele quadro pálido
Andava em círculos, cavando cada vez mais fundo
Girava cada vez mais perto, me aprofundando nesta cavidade
Uma lacuna, um buraco, olho negro da terra
Um flerte da morte, apaixonada e faminta
Ossos trincados, porosos enganos
De posse bastarda
Morosa consumação
Corpo findo alma infinita
Um dualismo judaico-cristão
Povoou-me as fantasias
Pretensões desvairadas
De um ego vaidoso
Convicto de sua nobreza
De imaculado saber
Opressor da matéria
A julgar
Condenar
Sentença brutal:
O corpo
Relegado a domesticação
Mas hão de lhe fazer justiça, nos confins desta terra
Das paixões que lhe reprimem, das angústias que lhe imputam.

sexta-feira, novembro 20, 2009

Já é tarde

Deixe tudo como está
Os papéis sobre a mesa
Os livros no chão
Meu coração é um punho fechado, dilacerado
Minha alma é um mundo perdido, soterrado
Preciso dormir. Amanhã é uma prova
Uma prova do tempo
Hoje não parei para olhar o céu. Nem ontem
O sol não me toca, nem queima. Não dentro deste gabinete
Se não me apressar, perderei a manhã e parte da tarde
Já você, quando não estou ao seu lado, perco cada segundo de um olhar a um sorriso.
Perdão. Já é tarde
Perdoe-me, mas é sempre tarde demais.

domingo, novembro 08, 2009

Sossego

No fim da tarde
A cigarra começa a cantar
As copas das árvores começam a dançar
Eu me sento sobre o toco de tronco rachado
Olho distante esse mundão que parece dormir
E um pouco de paz a que tanto aspiramos me chega ao coração
Mal posso fechar os olhos com medo de abri-los novamente e meu mundo se desvanecer.

terça-feira, novembro 03, 2009

Paisagem

A neblina cobre as montanhas que cercam a cidade
Revelando aos poucos seus contornos irregulares
Na orla o mar se ergue como um colosso, deitando-se sobre as areias profanas do vasto formigueiro de saúvas.
À suas costas abre-se um recôncavo impedido pelo aterro, águas insalubres tingidas de negro petróleo, submetidas à vontade humana.
Superfície tremulante, dotada de um sossego letal.
Persiste uma paisagem fingida, como o frescor das flores mortas de um ramalhete.
Simulacro da vida que aos poucos se esvai.
Maravilha desgraçada e poluída. Destroços de um sonho vencido.
Paisagem, desenho borrado, passatempo para aqueles que se põem a admirar aterradora ficção.

terça-feira, outubro 27, 2009

Agora

A noite chegou
E com ela veio o silêncio dos dias de domingo
Algumas pessoas falam na calçada
O relógio é uma arma apontada para minha cabeça
Desvio o olhar, não quero pensar no amanhã
Quero o agora, a quietude do instante, a leveza do presente

domingo, outubro 25, 2009

Pressão atmosférica

Meu olhar se alinha entre as grades de ferro para ver o tempo chegar.
A beleza que apreendem é a beleza do mundo que se estende além dos prédios da cidade.
As nuvens viajam pesadas, pairando acima das montanhas rochosas, vêm confirmar a previsão meteorológica.
Estou ainda na fronteira entre o previsto e a evidência, o fato segue independente das fronteiras do saber.
Olho a paisagem tentando não traduzi-la em verdade, deixo prevalecer as sensações que os olhos não concebem, e então, sinto o dia virar noite.
A cidade perde seus contornos projetados em linhas retas, curvas sólidas, abrindo espaço à imensidão do mundo e o frenesi concreto revela sua insignificância.
Carne humana, ruído mecânico, brisa mista de gazes tóxicos, confinados em uma panela de pressão.
No silêncio irrompe o grito da multidão, matéria bruta convertida em mercadoria. Impassíveis, utilitários, aparentemente saborosos, servidos prontos para o consumo.
Aqui tudo acontece sob a lei da pressão atmosférica, lá fora o silêncio e a escuridão, o universo imensidão, engolem a exiguidade de um planeta azul.

sexta-feira, outubro 16, 2009

Sono

Era noite e nossos olhos quase fechavam
Chovia e nossas bocas calavam
O mundo acontecia lá fora
Pessoas sorriam, corriam, se escondiam
E em nós morava o silêncio infinito
O sono pendia sobre nossas cabeças
A respiração varava o peito
Ungia-nos o calor da concórdia
A quietação dos ânimos
Duas almas pachorras
Sossego nos quartéis e conventos
Rogamos para que fosse justo
E então nos entregamos em paz